Por Filipe Venturini Signorelli
Um sistema de saúde não sustentável mata, segrega vidas e atendimentos de qualidade. O bem-estar do paciente começa pelas formas com que as relações econômicas dos atores que compõem a cadeia da saúde acontecem. O que vemos, muitas vezes, é o paciente se tornar apenas um número, sendo coisificado em um patamar de ‘lucros e despesas’.
O Instituto Ética Saúde (IES) – como interlocutor entre todo o setor da saúde, proporcionando o diálogo sobre as conduções, em particular nas relações econômicas – propõe um debate, com engajamento profundo sobre um novo sistema de remuneração, no Brasil, junto a todos os interessados, acompanhando um caminho de discursões já existentes e capitaneada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Discute-se muito a migração do fee-for-service para pay for performance (P4P), dentre outros. Há disposição concreta para que sejam revistos tais formatos? Estes se enquadram no modelo em que foi construída a cadeia de valor na saúde no Brasil, em nosso formato legal e cultural? Quem está disposto a mudar para verificar a real efetividade?
Tais questionamentos podem ajudar a compor o mosaico de um verdadeiro modelo a ser “construído” para se adequar a realidade brasileira, podendo assim, balizar o que efetivamente conseguirá ser executado. Por isso, o envolvimento de todos os interessados se faz importante. Estamos aqui discutindo a sustentabilidade não só de um segmento que abrange as operadoras de saúde, mas, de todo um setor. É importante “andar de mãos dadas”, dialogando para que nenhuma parte seja prejudicada em benefício de outra. Pois, ao final de todo processo, o resultado é comum a todos, e o mais importante sempre será, e diferente nunca poderá ser, qual seja, a segurança do paciente.
Uma saúde suplementar sustentável, que consiga atingir patamares de atendimento isonômicos, com máxima transparência, ética e integridade também perpassa pela sustentabilidade econômica daqueles que promovem a saúde suplementar. Colocar na mesa todos os pontos necessários para que isso seja publicamente discutido, os gargalos percebidos, o lugar em que cada elo da cadeia pode se posicionar e trabalhar em prol desta efetiva tarefa de adequar as formas de remuneração dos profissionais é ponto que denota urgência, pois, de acordo com a ANS, no Brasil são mais de 50 milhões de vidas que utilizam e dependem do serviço das operadoras de saúde. Assim, sabemos que existem diversos pontos a serem discutidos, mas, damos holofote, neste momento, ao formato de remuneração por evidenciar que sua grandeza é ululante para que a justeza e equilíbrio econômico sejam percebidos com maior celeridade.
Na rotina do setor, observamos esta preocupação perante as operadoras de planos de saúde, o governo (em todas as suas esferas), as empresas que contratam planos, os fornecedores, indústria, os hospitais, os próprios profissionais que são (ou serão) beneficiados e/ou prejudicados com o formato a ser definido e afins; mas, em particular, temos observado tais discussões dentre os usuários, em especial, por meio da sociedade civil organizada que atua na defesa de pacientes.
Dentro deste escopo, inteligente são as palavras de Ricardo de Oliveira Bessa afirmando que “alterar a remuneração dos serviços médicos influenciará os gastos totais das operadoras de planos de saúde. E tem-se a impressão de que todas as partes interessadas estão insatisfeitas com o cenário atual.”
Nosso papel enquanto instituição interlocutora (Instituto Ética Saúde) do setor público-privado e privado-privado não é apontar responsabilidades que geraram a problemática hoje existente, mas sim, servir de intermediadora do diálogo. O que foi já foi, vamos olhar para frente, vamos fazer desta importante discussão uma mola propulsora para planejar e executar, de forma gradativa, um novo modelo.
Que não sejam alavancadas disputas e protagonismos desnecessários, e sim, que seja efetivamente um movimento de todos os envolvidos e comprometidos com a sustentabilidade deste segmento tão importante para nós, cidadãos brasileiros. Que o acesso a todos os interessados na saúde suplementar seja real e seu objetivo de auxiliar a garantia de acesso da população, por meio dos planos de saúde, a uma assistência médico-hospitalar qualitativa, seja perpetuado. O que, sem dúvida, é um modelo que auxilia o Estado no “desafogamento” do SUS, que por si, é um orgulho nacional como referência no mundo, porém, também encontra suas limitações pela grandeza territorial e populacional do nosso País.
A professora Angélica Carlini, em recente artigo, levantou uma questão importante, que, no mais alto patamar da defesa do cidadão brasileiro, e na atuação pública e privada, deve ser pensada:
“Uma última pergunta que incomoda, mas precisa ser feita: o Sistema Único de Saúde está preparado para receber a demanda de beneficiários de planos de saúde que não poderão mais custear seus planos e voltarão a utilizar integralmente a saúde pública?
Esperamos que sim, tanto quanto esperamos que a sociedade brasileira compreenda com urgência que não podemos seguir sendo um país que preserva direitos, despreza deveres e nega consequências. A diferença do remédio e do veneno é a dosagem.”
Devemos sim refletir, prever e assumir as consequências, caso haja um encarecimento exponencial dos planos de saúde, como temos observado nos últimos tempos.
O Estado conseguirá suprir todas as demandas que migrarão do setor privado, atendidas pelos planos de saúde, sendo que, um dos objetivos principais da saúde suplementar é justamente, direta ou indiretamente, dar este “suporte”?
Público e privado devem caminhar lado a lado, para que se verifique a isonomia, com atendimento qualitativo e eficaz para todos os cidadãos, traçando as estratégias necessárias para que a suplementariedade do setor privado seja parceira incondicional do Estado, em ações estrategicamente planejadas para que o funcionamento do Sistema de Saúde no Brasil possa ser eficiente no exato desejo da Constituição Federal de 1988 e Legislações atinentes ao tema, como a Lei 9656/1998.
Mas, surge uma questão: Quais são estes modelos de remuneração que podemos utilizar na saúde suplementar? Seriam viáveis a realidade do Brasil?
Em suma, apontamos que o atual meio de pagamento, no Brasil, é conhecido como “por procedimento” ou fee for service, que se baseia na quantidade de serviços prestados. Segundo Ricardo de Oliveira Bessa,
“é um sistema de pagamento realizado de forma retrospectiva ou de pós-pagamento, tradicionalmente mais utilizado para a remuneração do trabalho médico e dos serviços hospitalares. É uma forma de pagamento por procedimento individual, item a item”. Continua o mesmo autor: “neste tipo de remuneração há a tendência de produção excessiva, indução desnecessária de atos realizados (…)”.
Outro modelo apresentado pelo mesmo autor é o da Capitação ou capitation, que envolve o pagamento de uma quantia fixa por pessoa inscrita. Embora esse modelo possa aumentar o número de atendimentos, há preocupações sobre a qualidade do cuidado, que pode ser sacrificada em favor da quantidade.
“O médico deve gerenciar a utilização dos serviços e há interesse por parte dele em eliminar os exames e procedimentos desnecessários, bem como em incentivar medidas de prevenção e promoção à saúde para diminuir a utilização de serviços e permitir a continuidade da atenção. (…) Neste modelo, frequentemente, verificam-se a subutilização de cuidados necessários (consultas de rotina, retornos, exames, internações, etc.) e a seleção adversa de risco, pois se buscam os pacientes de menor custo, em detrimento daqueles de maior custo. Evita-se encaminhar para especialistas com vistas à maximização de ganhos.
Outra opção apontada pelo autor é o pagamento por salário, que é a forma de remuneração mais tradicional, mas que também tem suas limitações. Aponta também o modelo de “pacote” envolve acordos pré-estabelecidos entre prestadores de serviços de saúde e pagadores, com uma das partes assumindo um risco maior em relação ao volume de demandas.
Uma alternativa interessante é o pay for performance que se traduz como “pagamento por desempenho”. Conforme Bessa,
“As premissas básicas que precisam ser consideradas na organização de um programa baseado em desempenho são: foco no paciente; envolvimento dos médicos na construção e no desenho do programa; participação voluntária; indicadores baseados em solida evidência científica e premiação pela alta qualidade do cuidado. (…) O programa demanda, por isso mesmo, uma infraestrutura tecnológica eficiente, para a análise adequada das informações obtidas, comparações e demonstrações de melhorias obtidas nos indicadores de saúde – sem comprometer o sigilo médico. Nessa modalidade, os prestadores recebem um pagamento de base e, quando alcançam determinados benchmarks para medidas de processos do cuidado prestado e para medidas de resultados do cuidado ao paciente, recebem adicionalmente certas recompensas. Isso pode incluir o pagamento de incentivos financeiros e a classificação da qualidade de prestadores específicos. As classificações são transparentes para os consumidores e podem influenciar a escolha do prestador. Programas de remuneração por desempenho têm potencial para melhorar os indicadores de qualidade da atenção à saúde, e para diminuir os obstáculos entre os protocolos recomendados e aqueles tratamentos utilizados rotineiramente na prática diária. São também úteis para promover um uso mais eficiente dos recursos destinados à saúde e melhorar os resultados aos pacientes”.
Este modelo citado é de importante discussão, pois, coloca o paciente em evidência, aparentemente, delineando justeza e qualidade no atendimento, em conformidade com o desempenho esperado dos profissionais e prestadores de serviços de saúde, em que, o aponta para um equilíbrio entre o serviço efetivamente prestado, a segurança do cuidado com o paciente e a remuneração justa a ser percebida.
Outra abordagem que aqui citamos, e tem ganhado destaque, é o fee for value que pode ser traduzido como “pagamento por valor ao paciente”. Este modelo busca incentivar a colaboração entre todos os atores da cadeia de saúde, com o pagamento baseado em resultados efetivos para o paciente. De acordo com Cristiano Teodoro Russo, a remuneração neste modelo tem como escopo central “estabelecer novas formas de pagamentos entre as partes baseando estes valores na qualidade dos serviços e no sucesso do desfecho clínico, e não somente no custo operacional e demanda”. E continua o autor:
“O sistema passaria de um modelo de pagamento por volume (fee-for-service) para o pagamento por valor (Value-reimbursement strategies). Assim, os valores/pagamentos dos Cuidados em Saúde Baseados em Valor (em tradução livre) seriam calculados pela taxa de sucesso de tratamentos, diagnósticos, atendimentos e do impacto de cada momento destes na percepção de satisfação do cliente/paciente. Vamos simplificar a proposta: quanto melhor o serviço, mais ele poderia custar, entendendo que toda a cadeia envolvida elevaria seu desempenho.”
Neste sentido, deve-se observar, em nosso pensar, que a mudança de um sistema de pagamento baseado em serviço para uma remuneração baseada em valor não é algo simples. Requer uma mudança cultural e a vontade de toda a cadeia de saúde de experimentar um novo modelo. A sustentabilidade das operadoras de saúde está em risco e isso coloca em perigo toda a população beneficiária.
Em recente debate sobre o tema, no congresso da Unidas Autogestão em Saúde, ocorrido em Salvador/BA, em outubro de 2023, tal temática foi debatida com afinco. Participando do painel “Abordagens colaborativas: modelos colaborativos e parcerias entre as partes interessadas em saúde, para impulsionar iniciativas de cuidados baseados em valor”, os profissionais André Luis Gall e Carlos Eduardo Sverdloff, moderados por este que subscreve o presente artigo, apontaram com clareza e notória precisão que um dos caminhos ideais é agir para testar um formato, um acordo compartilhado de riscos, ou seja, deve-se encarar riscos baseados na performance e tentar tal modelo. É fundamental que os envolvidos tenham noção real do seu papel, em assumir todas as responsabilidades necessárias.
Ou seja, os modelos aqui trazidos como exemplos não devem se esgotar. A discussão entre os atores envolvidos deve ser o ponto de partida para um modelo próprio, como já aduzido, que se adeque a realidade do setor de saúde no Brasil. Assim, aqui fica o apelo para que todos os interessados passem a compor os grupos de discussões já existentes, para que um denominador comum no modelo de remuneração na saúde suplementar no Brasil seja identificado, o que, sem a menor dúvida, será um divisor de águas como proposta de um modelo de gestão sustentável para saúde suplementar no Brasil, com reflexo direto em todo setor da saúde, seja ele privado ou público.
Referências bibliográficas
Bessa, Ricardo de Oliveira. Análise dos modelos de remuneração médica no setor de saúde suplementar brasileiro / Ricardo de Oliveira Bessa. 2011.
CARLINI, Angélica. A saúde suplementar no Brasil está doente? Rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar: perguntas que incomodam. Disponível em < https://www.migalhas.com.br/depeso/374164/a-saude-suplementar-no-brasil-esta-doente > acesso em 11 de dezembro de 2023.
Bessa, Ricardo de Oliveira. Análise dos modelos de remuneração médica no setor de saúde suplementar brasileiro / Ricardo de Oliveira Bessa. 2011.
Bessa, Ricardo de Oliveira. Análise dos modelos de remuneração médica no setor de saúde suplementar brasileiro / Ricardo de Oliveira Bessa. 2011.
RUSSO, Cristiano Teodoro. VBHC – Saúde baseada em valor: Porque é tão importante rediscutir as organizações de saúde. Disponível em < https://hazeshift.com.br/vbhc-saude-baseada-em-valor/ > acesso em: 11 de dezembro de 2023.
RUSSO, Cristiano Teodoro. VBHC – Saúde baseada em valor: Porque é tão importante rediscutir as organizações de saúde. Disponível em < https://hazeshift.com.br/vbhc-saude-baseada-em-valor/ > acesso em: 11 de dezembro de 2023.
Filipe Venturini Signorelli é diretor executivo do Instituto Ética Saúde. Advogado, professor e pesquisador. Mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Governança, Gestão Pública e Direito Administrativo; Direito Público; Ciências criminais e docência superior. Linha de pesquisa: Autorregularão Privada, Controle Social e Administração Pública. Conselheiro no IPMA Brasil – International Project Management Associate.
* A opinião manifestada é de responsabilidade do autor e não é, necessariamente, a opinião do IES
Muito bom o artigo, trazendo um resumo dos principais sistemas em discussão. Mas um aspecto importante é discutir o fator humano e entre eles, a formação de profissionais e a formação da cidadania e aqui, uma grande dificuldade. A sociedade brasileira tem se cristalizado numa tendência ao individualismo e consumismo que traz novas dificuldades ao processo de controle de gastos com saúde.