Por Ana Maria Malik
O presente artigo busca trazer uma análise da evolução temporal dos autores, organizações e temas tratados na área de qualidade e segurança em saúde no Brasil, segundo a visão parcial de um ator do cenário, nos últimos 50 anos. O método utilizado considerou revisão de bibliografia considerando textos desde os anos 1990, acesso recente e atualizado a sítios de organizações nacionais e internacionais e recurso não sistematizado a diversos stakeholders do período. Os resultados encontrados apontam para o fato de que, embora tenha havido progresso, o campo de prática (e de pesquisa) a respeito no Brasil ainda está em desenvolvimento e se encontra pelo país de maneira tão desigual quanto as realidades dos estados e municípios. Há muito a ser feito, o Sistema Único de Saúde é grande, ambicioso e precisa atingir os brasileiros em todas as suas necessidades, inclusive na assistência, de maneira sustentável.
Descritores – Gestão da qualidade, gestão da qualidade em saúde, segurança do paciente, gestão em saúde, avaliação em saúde.
Introdução ou como chegamos ao século XXI
A qualidade e a segurança em organizações de saúde são consideradas pelos seus usuários como uma expectativa básica. Ou seja, em última instância, nem caberia questionar sua existência. Nos anos 1960, no Brasil, a admissão para internação em um serviço de saúde era um fato relativamente raro, cercado de mistérios e de riscos. Na verdade, as cirurgias eram demoradas, a permanência nos serviços era longa e poucas explicações eram dadas (menos ainda oferecidas) a pacientes e familiares. Até mesmo a temperatura do paciente ou o resultado da aferição de sua pressão arterial eram mantidas em sigilo pela equipe assistencial. Menos divulgadas ainda eram as prescrições e os planos de cuidados (quando existiam). Nessa época, como o conhecimento e/ou a informação a respeito do assunto eram pouco disseminados, era crença arraigada do senso comum que o hospital era um local aonde só se ia quando imprescindível e onde o cuidado prestado, as instalações e os recursos disponíveis eram os melhores possível.
Com o passar dos anos, aumentou a quantidade de informações disponíveis para a população geral. Alguns noticiários da imprensa leiga (no século XX) e nas redes sociais (no século XXI) começaram a mostrar más condições de assistência em serviços de saúde. Em 1985, ocorreu a morte de um Presidente da República por “infecção hospitalar” contraída (naturalmente) num hospital e o assunto passou a ser discutido não apenas em fóruns profissionais. Afinal de contas, um Presidente só iria ao(s) melhor(es) local(is).
Ao mesmo tempo, passaram a ser divulgadas no país algumas ideias relacionadas à gestão da qualidade total e, com elas, a importância de programas de melhoria, assumindo que tudo sempre pode melhorar. Passaram a ser evidenciadas, entre outras, a necessidade de bons serviços de manutenção, trazendo à baila um tema que não estava no consciente das pessoas: manutenção não é algo óbvio, por mais que seja esperado, mas requer por trás de si uma decisão, recursos e competência técnica. Um dos exemplos da época era da aviação: explicitar que uma companhia tinha bom serviço de manutenção insinuava que em outra ele poderia não o ser, o que no mínimo poderia tornar cautelosos os potenciais clientes.
Nesse contexto, passou-se a valorizar modelos externos de avaliação (1). A avaliação interna valoriza aspetos que interessam diretamente a gestão e a governança do serviço, enquanto a externa obriga a organização a se preparar e, principalmente, a se submeter a padrões desenhados por agentes idealmente independentes, aplicáveis da mesma maneira a todos aqueles interessados em obter o certificado em questão. Foi quando se passou a discutir, no cenário econômico mundial geral, as certificações ISO (2), com suas diversas especificidades. No Brasil a chegada deste modelo foi considerada importante, principalmente nas empresas interessadas em competir no mercado internacional e, em seguida, no nacional. Ainda se utiliza este modelo; ele está longe de ser considerado um modismo, pois evoluiu a cada tanto; quem o utiliza sabe para que o faz e suas normas estão constantemente passando por atualizações. Dizer que o Brasil era o país com mais organizações certificadas ISO na América Latina não podia ser valorizado em demasia, pois certamente se tratava do país com mais empresas do continente, dadas suas dimensões. No entanto, a importância desses standards é inquestionável.
A aplicação de modelos como a ISO em serviços de saúde começou a ocorrer, muito lentamente. Sua adaptação a este setor ocorreu sob uma série de críticas referentes ao desconhecimento dos especialistas no modelo em relação a questões da assistência. Começou a ser utilizado o argumento – não apenas corporativista – de que, como a prestação de assistência médica é muito diferente dos processos de produção de maneira geral, não pode ser analisada segundo padrões aplicados na indústria. Seja como for, algumas unidades de organizações de saúde passaram a ser certificadas, inclusive no Brasil, não apenas aquelas claramente administrativas, como manutenção ou suprimentos, mas também terapias intensivas, bancos de sangue e unidades de diagnóstico, entre outras, tendo em vista a possibilidade de padronização de processos ali realizados. Se, por um lado, isso serviu como evidência de preocupação com a qualidade, por outro passou a refletir questões específicas que precisariam ser pensadas com ênfase nas especificidades do setor.
Simultaneamente, começou a ser mais conhecida no Brasil, e na América Latina como um todo, a acreditação hospitalar (que começou a ocorrer nos EUA no início do século XX). Como é recomendável não adaptar diretamente qualquer modelo pensado para outra(s) cultura(s), sempre cabe lembrar que a preocupação inicial estadunidense era com a formação profissional (3). Nos Estados Unidos, aliás, desde o final do século XX, a organização mais conhecida ligada ao processo de acreditação, a então Joint Commission for Hospital Accreditation, passou a se chamar Joint Commission for Accreditation of Health Care Organizations, ampliando seu escopo de atuação, até que, pela força do seu nome, passou a ser conhecida, no seu país de origem e internacionalmente, como The Joint Commission (TJC) (4). Com isso, e com o passar do tempo, essa organização assume diversas funções e diversos braços organizacionais, entre os quais um internacional (a Joint Commission International – JCI).
Para entrar nas discussões do século XXI cabe ainda introduzir como tema de debate a definição de serviços ou organizações de saúde (ou de assistência, para trabalhar com o conceito da TJC). Além de hospitais, já há anos as acreditadoras internacionais (principalmente a TJC e a canadense Accreditation Canda – AC (5)) enfatizam o aspecto de continuidade de cuidados, cuja premissa é que a pessoa não seja tratada em apenas um ponto da chamada rede de assistência. Assim, devem fazer parte das preocupações de quem trabalha com qualidade e segurança, além dos hospitais propriamente ditos, os serviços de apoio diagnóstico e terapêutico, o transporte, a assistência prestada na residência, os cuidados pós agudos, os cuidados paliativos, entre outros. De fato, na terceira década do século XXI a JCI, por exemplo, atua em centros médicos acadêmicos, ambulatórios, cuidado domiciliar, hospitais, laboratórios, cuidados de longo prazo, transporte médico e centros de atenção primária. A AC, por sua vez, atua em serviços comunitários, domiciliares e de atenção primária, sistemas de saúde, hospitais, serviços independentes, assistência a idosos, fertilização in vitro e centros de saúde indígenas.
O objetivo deste artigo foi problematizar algumas questões dadas como fatos, quando se fala em qualidade e segurança em saúde, principalmente no Brasil. No Brasil, o tema é discutido em meios acadêmicos e profissionais há mais de 30 anos, mesmo que ainda esteja longe de ter sido implantado nacionalmente; no mundo, o tema é tratado há quase um século (até mais, se forem considerados os esforço de Florence Nightingale e de Ernest Codman) (6) .
Método – ou como olhar para qualidade, segurança, melhoria e valor
A pesquisa realizada foi qualitativa, em função de vivências e entrevistas informais realizadas nos últimos 30 anos pela autora, além de estudos para publicações diversas. Trata-se de um texto amplo, com diversos olhares para os diferentes estados da arte sobre o assunto, com análise crítica da bibliografia acadêmica e de divulgação, além de sítios eletrônicos. A revisão de literatura não seguiu os cânones mais utilizados, tendo sido por vezes feita a opção por textos publicados há muitos anos em detrimento de artigos mais atuais, para garantir o recurso à literatura mais citada pelos envolvidos na prática. Outro objetivo é apresentar para os novos estudiosos do tema bibliografia não normalmente trabalhada.
Este método foge do escopo da reprodutibilidade, mas assume a premissa de que o conhecimento pode ter bases diferentes das de experimentos ou de revisões sistemáticas ou integrativas.
Resultados – Qualidade, segurança e gestão em saúde
Qualidade e segurança são frequentemente considerados conceitos equivalentes ou interligados: aquilo que tem qualidade deve ser seguro, segundo o senso comum. No entanto, a gestão da qualidade, com seus diplomas e símbolos, principalmente em saúde, nem sempre indica segurança. Poucas coisas ocorrem sem um planejamento detalhado, embora planejamento não garanta resultado, uma vez que a previsibilidade tem limites.
Os clássicos da Gestão da Qualidade, como Deming e Juran, (7) (8) assumiam algumas premissas como o conhecimento profundo (em primeiro lugar), a necessidade do planejamento e a visão de longo prazo, tentando fugir dos resultados imediatos,
Nos serviços de saúde a segurança deve estar explícita como um objetivo no planejamento da qualidade e para tal envolver recursos e esforços específicos. É fato que discutir, como já dizia Donabedian (9), um dos precursores da avaliação em saúde, as dimensões de estrutura, processo e resultado (uma vez que as amenidades não fazem parte do básico dos serviços) traz questões muito pertinentes ao tema em questão. O próprio autor afirmava, desde os anos 1960, que uma boa estrutura não garante um processo adequado, menos ainda o resultado desejado, pois há diversos imponderáveis na prestação da assistência. Fica claro, porém, que, sem gestão, não existe qualidade nem segurança.
Sempre cabe a discussão sobre o que são, afinal, essas duas características. Uma das definições de qualidade, de maneira geral, é aquilo pelo que o cliente de qualquer organização está disposto a pagar. No entanto, muitas vezes o cliente não sabe quais os problemas – de diversos tipos, inclusive de segurança – que podem ocorrer. Exemplo disso é o código de barras em materiais e medicamentos. Além de melhorar o controle de estoques, permitindo atuar sobre a eficiência da organização, já há evidências de que ele tem impacto sobre a segurança dos pacientes, com a rastreabilidade de possíveis erros de medicação ou de insumos inadequados. Esta informação não faz parte do rol daquelas mais acessadas pelos usuários dos serviços de saúde; eles tampouco são perguntados a respeito da utilização ou não desse instrumento em instrumentos sobre satisfação, menos ainda sobre sua disposição em pagar ou não pelos dispositivos envolvidos.
Para a Organização Mundial de Saúde – Europa (WHO Europe) a definição mais simples de segurança do paciente é a prevenção de erros e de efeitos adversos associados à assistência (10). Para essa definição ter utilidade é fundamental assumir que erros acontecem (levando a efeitos adversos) e podem ser evitados com medidas adequadas. Levou-se alguns anos de divulgação científica, no âmbito da literatura, para profissionais de saúde se convencerem de que isto é verdade. Quanto aos pacientes, essa percepção induziu-os a temerem serviços, num primeiro momento, e a desconfiar deles de forma geral, com o auxílio da divulgação de problemas pelos meios de comunicação de massa. No século XXI, artistas, políticos e outras celebridades têm seus procedimentos de saúde e tratamentos de doença, quando lhes interessa, divulgados inclusive em conjunto com assessorias de comunicação de serviços de saúde, atribuindo a estes um certo status junto à população. Ainda não é usual a prática da participação do usuário ou de seus acompanhantes no cuidado, mesmo que esta seja uma das medidas preconizadas, já há décadas, para mudar esta situação.
Há alguns anos, começou a ser difundido o mito de que seria possível evitar completamente as intercorrências em ambientes de serviços de saúde (11). Isto, porém, ocorreria apenas se o ambiente fosse totalmente controlável, o que é irreal. Por mais que a penalização na remuneração de episódios considerados como de não qualidade (ou resultantes de segurança inadequada) tenha sido tentada, há limites para o que se pode esperar, exigir ou punir. Falar, por exemplo, em reinternações não planejadas, é um bom começo pois permite considerar o andamento de determinado diagnóstico ou condição como um objeto de planejamento, sem deixá-lo ao sabor da evolução normal (ou não) do paciente. Essa é uma das diversas alternativas consideradas sob a denominação da remuneração baseada em valor (12).
Em tese, uma das ferramentas usadas no século XXI, com vistas ao uso eficiente dos recursos instalados, é a gestão de leitos (13), que se inicia antes da chegada do paciente a ser internado e, a partir daí, com o planejamento de sua estada, de sua alta e consequente saída. No Brasil, até 2016, essas ferramentas eram muito pouco usadas – inclusive em hospitais privados (14) – apesar do seu cada vez mais presente discurso pela busca da eficiência e, possivelmente, também nos públicos. Sempre há exceções, tanto que a partir de 2020 se fala bastante a respeito, com exemplos de casos bem-sucedidos, mas ainda há espaço para sua maior utilização.
Qualidade e/ou segurança, quem faz?
Olhando os sítios eletrônicos das organizações de acreditação é fácil verificar que a qualidade e a segurança fazem parte de sua preocupação inicial. No da TJC (15) está explicitado como sua missão capacitar e empoderar organizações de saúde mundo afora de maneira a construir alicerces para cuidado de qualidade e segurança do paciente, em tradução livre, mas quase literal. Sua visão de futuro, ainda em tradução livre, é que recebam a assistência à saúde mais segura, de melhor qualidade em todos os locais pelos quais passem na rede de cuidados. Fica claro que qualidade e segurança fazem parte da apresentação e da proposta de atuação dessa organização. Já no da AC (16), sua estratégia aparece definida até 2026, considerando a experiência da pandemia, focada em tudo o que é necessário para aprimorar a qualidade da assistência à saúde à medida em que se caminha para o futuro. A ideia é de um movimento na direção de uma visão de prestação cuidado mais seguro e de um mundo mais saudável.
Qualidade e segurança são palavras comuns, de definição vaga e nem sempre conhecida, que se tornaram aspirações legítimas de quem busca cuidados com a saúde. Desde os textos do chamado pai da qualidade total, WE Deming (8) tornou-se aceito que um dos 14 princípios da qualidade é o orgulho da mão de obra, ou seja, faz parte do papel da gestão eliminar barreiras que impeçam o trabalhador de se orgulhar do seu desempenho, ou que lhe dificultem a execução adequada de tarefas. Entre diversas outras causas, isto pode ocorrer por falta de condições de trabalho e/ou de conhecimento a respeito do que faz, levando a resultados aquém do desejado. No entanto, para este mesmo autor, fazer bem-feito (ou o melhor que se consegue), não necessariamente significa ter qualidade no trabalho, pois essas características, a rigor, podem não ser as necessárias. Fazer o melhor possível não significa que os requisitos para determinada situação foram cumpridos. Por outro lado, atender os requisitos tampouco significa qualquer coisa além de cumprir o básico. Qualidade, em resumo, significa fazer o que deve ser feito. Quanto à segurança, independente das definições técnicas cada vez mais conhecidas, pode ser traduzida por evitação de riscos.
Na área da saúde, um dos exemplos mais conhecidos – e lamentados – é o da segunda vítima (17): o trabalhador de saúde que incide num erro, tendo em vista alguma das condições acima. Pouco mais de 10 anos após o lançamento deste termo, o mesmo autor começou a considerar que talvez o nome tenha sido utilizado com menos parcimônia do que esperado (18).
Sob o ponto de vista de quem procura o serviço ou de quem paga por ele, não é mais suficiente seus gestores estarem satisfeitos com o desempenho obtido em determinado momento. Alguma chancela externa, técnica ou por parte dos usuários, pelo menos, deve fazer diferença na apreciação. Na área da saúde no Brasil, desde o início do século XX, os alvarás de funcionamento emitidos pela Vigilância Sanitária são, em tese, imprescindíveis para a atuação do serviço. Cada vez mais conselhos profissionais, órgãos públicos e as chamadas operadoras de planos de saúde realizam visitas com o intuito de verificar se as condições existentes são adequadas, seja para proteger profissionais e usuários, seja para mostrar empenho. Essas avaliações externas são mandatórias, em alguns casos os serviços precisam se submeter a elas para poder funcionar.
No Brasil, boa parte das diferentes avaliações externas como a ISO e as acreditações (nacional e internacionais) são voluntárias. Assim, as organizações decidem se querem ou não se submeter à avaliação, têm como se preparar para ela e devem pagar por sua realização. Em alguns dos sítios os custos (ou os preços) já constam, de outros não, mas é conhecido o fato de que existe gastos para a organização: primeiro, os investimentos necessários para o cumprimento de requisitos que não estiverem satisfatórios no momento da avaliação; a seguir, os custos com o processo de avaliação.
Há quem diga que os custos são um dos fatores que limitam o número de organizações com esses certificados. Por outro lado, sabe-se que os avaliadores ficam mais concentrados nas regiões Sudeste e Sul, mesmo que, num primeiro momento, o sistema nacional (SBA/ONA) (19) tivesse uma proposta de descentralização. O deslocamento aumenta os custos do processo. Esta proposta não se concretizou por diversas razões, das quais se pode destacar duas questões: uma, de mercado (não se verificou interesse suficiente por parte das organizações eventualmente avaliáveis); outra, de disponibilidade técnica (ainda se observa no país número reduzido de profissionais habilitados e os existentes, de maneira geral, se localizam nas regiões onde se concentram os hospitais e, consequentemente, os hospitais acreditados, mesmo que cada vez mais haja programas de formação de avaliadores).
Outro importante ator deste cenário é o IHI (Institute for Healthcare Improvement), que tem mais de 30 anos de existência. Segundo seu sítio eles vêm utilizando a Ciência da melhoria para avançar e tornar sustentáveis melhores resultado em saúde e levar saúde mundo afora. Embora esta organização tenha um amplo portfólio de produtos/serviços, no seu sítio consta a possibilidade de doação para ela. Apesar desta ideia também aparecer em outros sítios, sua visão é que cada um tenha a melhor assistência e a melhor saúde possível, (20). Este instituto tem atuação cada vez mais ampla no Brasil, sendo contratado por diversos hospitais e, no limite, pelo Ministério da Saúde, sendo financiado por recursos do PROADI-SUS, em atividades colaborativas, como também está apresentado na sua página eletrônica (21). Realizam cursos, consultorias, catalisam processos específicos como de parto adequado ou de redução de infecções hospitalares, entre outros.
O conceito de valor, que aparece, por sua vez, tem sido introduzido na saúde no século XXI, a partir do livro de Porter e Teisberg (23), em que fica estabelecida a subjetividade do seu entendimento. Embora preço, custo, certo e errado sejam definidos e aceitos, quem atribui valor a determinada prática ou atividade é seu usuário, seu cliente, quem depende dela. Assim, o preço de uma visita de acreditação é fixado com base em critérios apresentados pelos acreditadores e talvez negociado, dependendo de quem for o cliente. Seu valor, porém, deve ser atribuído por quem compra o produto ou serviço, com base no resultado esperado ou obtido em relação ao que foi gasto para obtê-lo. Desta forma, caro ou barato têm a ver com o que se conseguiu a partir do processo. Além disso, a definição de quem compra o produto ou serviço tampouco é uniforme, pois este ator pode ser entendido como o usuário final, a operadora de saúde, o sistema público, seu trabalhador, os governos, os órgãos de divulgação.
Neste caso, a expectativa pode ser atrair mais pacientes ou mais profissionais (idealmente mais qualificados) interessados em trabalhar no serviço acreditado. Mas também pode ser dispor de processos mais organizados, que deem mais segurança aos gestores, ou de um certificado que traga mais operadoras de saúde ou, se e quando isso acontecer, garanta preços mais vantajosos. Ainda pode ser buscada a oportunidade de sair na imprensa ou de ser considerado fonte de boas práticas. Finalmente, cabe pensar na possibilidade de a organização se sentir mais confiante em oferecer qualidade e segurança a todos os seus stakeholders. A decisão de começar um processo desse teor não é trivial, porque ele é definido como algo que tem implicações na organização como um todo, mesmo que haja quem defenda escritório de qualidade, escritório de segurança ou escritório de valor, com atividades paralelas.
Na segunda década do século XXI, uma das expressões mais usadas na literatura e por aqueles que se propunham a apresentar práticas mais adequadas era “organizações de saúde de alta confiabilidade” (OAC) ou high reliability organizations (HRO), que tem como uma de suas origens o Marketing. Outro campo de conhecimento que utiliza esse conceito é a área de inovação, que trata de organizações onde há tecnologias (processos e equipamentos) complexas, mas onde, apesar disso, costumam ocorrer menos erros e acidentes que nas demais (24), sendo este tema trabalhado desde o final do século XX. Observa-se nesse tipo de organização importante preocupação com falhas e com a “resiliência” (capacidade de rápida recuperação). Isto lhes permite identificar erros, de forma a saná-los e a garantir o funcionamento do sistema. É fácil identificar potencialmente os serviços de saúde como parte desse universo, ainda mais quando se discute a questão da segurança. No mundo real isto ainda é um desejo para a maioria, mas já há exemplos a seguir e caminhos estabelecidos.
Afinal, o que é necessário para melhorar a qualidade e a segurança da assistência – ou o Brasil está no caminho?
20 anos após o início das atividades da acreditação hospitalar no Brasil, ela está longe de ser uma realidade nacional. De fato, a cada ano aumenta o número de hospitais acreditados, porém num ritmo muito lento: em 2023 a porcentagem destes frente ao total de existentes ainda estava abaixo de 10%. O mesmo vale para quaisquer serviços de prestação de serviços do setor. Na área de apoio diagnóstico e terapêutico, associações ou sociedades técnicas são as avaliadoras externas consideradas legítimas pelos gestores e pela comunidade setorial; os colégios de radiologia e de patologia clínica, por exemplo, estão entre os acreditados pela |ISQUA. No país, pode-se dizer que a população usuária dos serviços atribuiu pouco mérito aos esforços de obtenção dos certificados, talvez porque não os conheça.
A opinião pública é muito mais afetada por notícias sobre quem foi atendido onde e se houve ou não divulgação de problemas em larga escala do que por argumentos científicos ou técnicos. A maioria dos rankings, quando existe, tem critérios discutíveis e população de respondentes não validada. Por outro lado, não se pode dizer que esses rankings ou os certificados de avaliação externa façam alguma diferença na procura por serviços de saúde, pelo menos até o primeiro quarto do século XXI, no Brasil. No setor público, a existência e a disponibilidade do serviço, além do encaminhamento para procedimentos de maior complexidade e a possibilidade física de acesso, costumam ser o grande determinante da escolha, superando a reputação, boa ou má, do serviço.
No setor privado a capacidade de pagamento, associada aos demais fatores, ainda faz diferença. Estar disponível pelo “plano de saúde” é um dos maiores indutores de procura por acesso. Ter o médico como um parceiro para ocupar os leitos e demais serviços é um importante instrumento de busca de sustentabilidade financeira. Para este profissional, não necessariamente certificados de avaliação externa ajudam. A quantidade de trabalho requerida (preenchimento de prontuário e outras atividades percebidas por ele como burocráticas) pode ser considerada como uma das causas para esta não valorização. No momento, questões deste tipo, associadas às novas regras de compliance têm sido associadas a um novo diagnóstico da categoria, a síndrome de burnout (25).
Em tese, os selos de certificação deveriam ser uma garantia de condições assistenciais, mas nunca conseguiriam trazer certeza de sucesso, porque os conhecimentos da área da saúde não conformam um corpo de conhecimento de ciências exatas. No mínimo existem as variações individuais, dos pacientes e dos profissionais, que interferem nos resultados obtidos. Pode-se garantir que a área física seja adequada, que os procedimentos realizados sigam as evidências científicas mais recentes e que os profissionais sejam qualificados e estejam atualizados. Não é possível, porém, assegurar que a atenção dos profissionais esteja integralmente voltada a suas tarefas, que o organismo dos pacientes responda adequadamente às terapêuticas preconizadas, nem que tudo se passe conforme desejado.
No Brasil, por outro lado, os selos de certificação – após mais de 20 anos do início dos processos de acreditação, por exemplo – não podem ser considerados como difundidos. Algumas entidades, como a Associação Nacional de Hospitais Privados (ANAHP) apresentam como pré-requisito para associação algum compromisso com qualidade (e acreditação tem sido aceita como evidência); organizações públicas gerenciadas por entidades privadas (com ou sem finalidade lucrativa, como é o caso das Organizações Sociais e Saúde – OSS ou das Parcerias Público Privadas – PPP) buscam legitimidade perante a opinião pública obtendo certificações. Instituições filantrópicas de maneira geral, como as Santas Casas por exemplo, por vezes buscam qualidade por meio de mecanismos alternativos aos mais reconhecidos. No mercado brasileiro isso pode ser encontrado em função de tradição. Algumas (poucas) operadoras de saúde, mais que o SUS, têm feito discriminação favorável neste sentido. O SUS definiu, em 2009, 6 hospitais filantrópicos como de excelência e usou como um dos critérios para tal o fato de eles serem acreditados. Em 2023 são apenas 6, cinco no município de São Paulo e um em Porto Alegre, e o critério continua sendo válido (26).
No século XXI, artistas, políticos e outras celebridades têm seus procedimentos de saúde e tratamentos de doença, quando lhes interessa, divulgados inclusive em conjunto com assessorias de comunicação de serviços de saúde, atribuindo a estes um certo status junto à população.
O fundamental para melhorar qualidade e segurança, como em tudo, são conhecimento, condições de trabalho, dedicação e relacionamento com o paciente. Como se convenciona falar em saúde trata-se de um constructo multifatorial. Só o conhecimento mais atualizado não permite garantia de sucesso. Apenas condições de assistência (incluindo a disponibilidade dos melhores profissionais) tampouco podem ser consideradas fiadoras de resultados. Dedicação é básico, porque implica atenção, envolvimento, aplicação dos conhecimentos e empenho na busca das condições. No entanto, já é conhecido há décadas que, sem o envolvimento do paciente, sem sua atitude e sua anuência, os esforços podem ser frustros. Por isso, cada vez mais se considera este um dos grandes artífices dos desfechos (27) (28).
O que é possível concluir: a quem interessam programas acreditadores e certificadores, qualidade e a segurança em saúde OU a cadeia de valor na saúde
No chamado melhor dos mundos, no mundo de Pangloss do Candide de Voltaire, (cuja primeira edição data de 1759) para quem “tudo sempre caminhava para o melhor no melhor dos mundos”, todas essas iniciativas, esses resultados e desfechos interessam a todos os stakeholders do setor. No entanto, a um olhar um pouco menos otimista é dado perceber que, em geral, cada um deles pensa ou se preocupa com outra coisa e busca um resultado específico. Alguns deles nem têm clareza do que buscam e outros não se dão conta de que sua atuação não tem saúde como finalidade precípua. Há os que nem consideram fazer parte do setor da saúde.
Nesse caso, a própria noção de cadeia de valor na saúde (30) pareceria não fazer muito sentido, pois naturalmente uma parte se relacionaria com outra fornecendo todo o necessário para o desenvolvimento dos processos, sempre adequados, sempre necessários e sempre com o único intuito de seguir as melhores práticas, evitando o desperdício e a utilização de procedimentos e insumos questionáveis, na tentativa de garantir a conduta mais correta e o desfecho mais favorável segundo todos os envolvidos. Como o melhor dos mundos não existe, para entender o setor e suas peculiaridades regionais, cabe retomar cada um de seus componentes principais, desde o desenvolvimento de conhecimento até a prestação de serviços assistenciais e de apoio, passando pelo fornecimento de produtos, intermediação financeira em suas mais diferentes formas, distribuição de bens e serviços e logística e sistemas de informação.
Esta visão é genérica o suficiente para exigir uma explicação: está-se falando das diferentes indústrias que desenvolvem conhecimento e produtos para o setor, ao mesmo tempo em que se tem em mente a universidade, que produz conhecimento e forma profissionais de todas as áreas. A formação não se limita às universidades, pois não se fala apenas de trabalhadores de nível superior. Além disso, o papel dos Institutos de Ensino e Pesquisa cada vez mais presentes em hospitais, não pode ser desprezado sob pena de desperdiçar esforços e recursos de monta e largamente utilizados. Regulação entra na cadeia, tanto para controlar quem pode trabalhar no setor e em que condições até quem produz e distribui produtos e serviços, onde, de que forma e a que preço. Este quesito contribui para caracterizar o sistema como tal.
No Brasil, também existem na cadeia normas e regramentos, bem como espaço para a inovação em todas as suas formas. Às vezes não se trata de inovação, mas de uma nova roupagem para um processo ou terapêutica conhecida, ainda mais num momento em que este termo se tornou um mantra da gestão. Em outras circunstâncias, as normas atrasam o ingresso no mercado para entrar numa disputa de poder, mas com frequência seu objetivo é proteger o cidadão, educado pelos cada vez mais presentes meios de informação (alguns corretos, outros não) para sempre buscar o novo, sem considerar seus riscos.
Todas as partes da cadeia, do Estado ao cidadão, têm potencial interesse nos temas aqui discutidos. No entanto, sua expressão se relaciona com seu conhecimento, sua possibilidade de expressão e a prioridade explícita no momento. Em situações de decisão política pela austeridade econômica, a saúde piora; o sonho de consumo das pessoas pode migrar da casa própria para o plano de saúde; a expectativa da saúde plena e da vida eterna é estimulada de forma normativa, por meio da proibição de comportamentos usuais.
Qualidade e segurança na saúde ou para o paciente, na verdade, estão sempre nos discursos daqueles que trabalham com o tema. Gestores de serviços, consultores, agências acreditadoras e técnicos cuja atividade depende disso estão entre seus grandes defensores. No entanto, só haverá mudança real no cenário quando esses temas deixarem de ser vistos como mais um dos pedaços de que se compõem a atividade nos serviços e passarem a ser percebidos como responsabilidade coletiva, assumindo seu papel como parte do imaginário do texto constitucional onde se estabelece que saúde é direito de todos. Os conceitos de qualidade e segurança ainda estão subjacentes a este texto, como tantas outras necessidades reais e justas aspirações da população.
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Ana Maria Malik é MD, MSc, PhD, Profa. titular da FGV-EAESP e Acadêmica da Academia Brasileira de Qualidade (ABQ).
* A opinião manifestada é de responsabilidade da autora e não é, necessariamente, a opinião do IES