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A interação entre profissionais de saúde e indústria na educação médica continuada como objeto de compliance

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Por Aline Moura

 

Uma análise do Projeto de Lei nº 2.453/2015

 

INTRODUÇÃO

O Brasil enfrenta tempos turbulentos com questões sérias e complexas a serem resolvidas nos campos político, econômico e social. A população anseia por mudanças efetivas que, impulsionadas por ares de transparência, integridade e ética, acabem por resguardar o nosso estado democrático de direito.

Como importante pilar social, o setor de saúde não passa incólume por esse cenário. Reiterados escândalos envolvendo os atuantes do setor e a delicada situação em que o segmento se encontra, acabaram por fomentar inúmeras iniciativas que pretendem elevar o seu nível de integridade, tais como medidas de compliance, autorregulação e projetos de lei.

É exatamente inserido nesse contexto que esse artigo tentará expor ponderações e reflexões acerca do Projeto de Lei n. 2.453/2015, partindo da premissa de ser objeto de compliance a interação entre indústria e profissionais de saúde.

Não se questionará a legitimidade da preocupação encartada pelo projeto de lei que objetiva mitigar o risco de conflito de interesses entre profissionais de saúde e indústria, no entanto será questionada a medida escolhida, afinal propor tão somente o afastamento da indústria do processo de educação médica continuada, como meio de mitigar esse risco, poderá não ser medida efetiva, bem como, poderá trazer inúmeros efeitos colaterais ao setor de saúde.

É sabido que a relação entre indústria e profissionais de saúde vem passando por escrutínio social, inúmeros questionamentos e desconfiança estão sendo direcionados à essa relação visto ser terreno fértil para conflitos de interesses, no entanto, não se deve perder do radar o imenso caráter colaborativo que existe nessa relação, em especial ao que se refere aos avanços nos cuidados de saúde.

Dessa forma, o que se propõe é que, conscientes dos dilemas éticos, mas sobretudo, conscientes também do caráter científico e tecnológico positivo dessa interação, analisemos o Projeto de Lei em comento com racionalidade para sermos capazes de mitigar os riscos oriundos dessa interação entre indústria e profissionais de saúde, de modo a extrair dela somente seus frutos positivos.

ANÁLISE GERAL

Origem e fundamento

Mencionado projeto de lei foi apresentado em 17/07/2015 e é de autoria da CPI da Câmara dos Deputados formada para investigar a cartelização na fixação de preços e distribuição de OPME (Órtese, Prótese e Materiais Especiais), cartelização essa que ocasiona a prática de criação artificial de demanda e captura de serviços médicos por interesses privados.

Por entender que a interação entre indústria e profissionais de saúde, em especial no âmbito da educação médica continuada, era cenário para que fossem firmados acordos ilícitos, a CPI decidiu elaborar um projeto de lei que objetiva alterar a Lei n. 8.080/90, de modo a incorporar às atribuições do SUS (Sistema Único de Saúde) a criação de um Sistema de Educação Permanente em Novas Tecnologias e Dispositivos Médicos, afastando a indústria dos profissionais de saúde e deixando a educação médica continuada como atribuição do sistema público.

Justificativa

A CPI acima citada concluiu que em razão da ausência do Estado na promoção da educação médica continuada, esse espaço foi preenchido indevidamente pela indústria, ocasionando um estreitamento indevido da sua relação com profissionais de saúde.

Por essa razão a CPI acredita que afastando a indústria do fomento da educação médica continuada, seria medida suficiente para romper o elo desta com os profissionais de saúde, mitigando assim os riscos de conflito de interesses oriundos dessa relação.

A CPI defende também que, como reflexo positivo acessório, esse afastamento entre ambos impactaria no preço final dos produtos ofertados no mercado de saúde, uma vez que a indústria estaria desonerada dos custos do fomento da educação médica continuada, baixando com isso o seu custo operacional e, em última análise, baixando os preços dos seus produtos.

O rompimento do elo entre indústria e profissionais de saúde

É sabido que a interação entre ambos ocorre por diversas circunstâncias, tais como, contratos de consultoria; visitas de propagandistas farmacêuticos ao consultório médico; pesquisa científica; contrato de royalties; dentre outras situações rotineiras.

Neste sentido, considerando que essas outras frentes de interação não foram vedadas pelo projeto de lei, não parece crível que haverá o rompimento do mencionado elo tão somente com o afastamento do setor industrial da promoção de eventos de educação médica continuada.

Sendo, portanto, a medida proposta no projeto de lei insuficiente para realizar o rompimento pretendido.

A baixa no preço final dos produtos de saúde

Importante destacar que o valor de mercado de um produto resulta de uma sistemática complexa relacionada aos custos produtivos, custos operacionais e estratégias, de posicionamento de mercado do produto e da marca em si, de modo que os gastos com educação médica continuada causam pouca influência no preço final dos produtos.

Para a efetiva diminuição do preço, em especial nos casos de dispositivos médicos implantáveis, será preciso enfrentar questões relevantes, tais como: custo corrupção; concentração de mercado por grandes empresas; descolamento do preço nacional em relação ao preço internacional; práticas de reserva de mercado através de cláusulas de exclusividade nos contratos de distribuição; baixo espaço para negociação de preços; práticas de concorrência desleal; acréscimo de margem de lucro a cada etapa da comercialização; ínfimas alterações técnicas que impactam de forma injustificada o valor final dos novos produtos, ausência de regulação na fixação de preços desses produtos, dentre outras que, certamente, exercem influência no preço final dos produtos.

Sendo, portanto, a medida proposta pela obra legislativa incapaz de atingir a diminuição de preço pretendida.

O SUS e a nova incumbência de prover a educação médica continuada

Tendo a crise financeira do SUS como realidade, cumpre questionar a pertinência e viabilidade de se atribuir a educação médica continuada como mais uma de suas atribuições.

Embora a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde já seja uma responsabilidade constitucional do SUS para cuidar da formação de recursos humanos para a área da saúde, a estrutura adicional para ensino de Novas Tecnologias e Dispositivos Médicos, certamente trará um custo adicional a uma operação que já não se sustenta financeiramente, sendo que não foi esclarecido na obra legislativa se seriam direcionados recursos financeiros adicionais frente a essa nova empreitada direcionado ao sistema público.

Malgrado o sucesso ideológico que o SUS efetivamente representa, demonstra-se notória a sua escassez de recursos, o que, na maioria das vezes, o faz ser reconhecido por sua improficiência no campo prático.

Sendo a insuficiência de recursos financeiros uma realidade do SUS, tal condição certamente impactará negativamente a qualidade da educação médica continuada a ser oferecida nesse novo modelo pretendido, de modo a causar prejuízos à atualização e preparo dos profissionais de saúde, causando também prejuízo aos pacientes quanto ao acesso às melhores e mais avançadas opções de cuidados de saúde.

 

ANÁLISE JURÍDICA

A livre iniciativa da indústria

Uma vez que a Constituição Federal resguardou a liberdade comercial à iniciativa privada, deve também garantir os meios para seu exercício, isso, em consonância com a Teoria dos Poderes Implícitos que estabelece que àquele a que se concede os fins, também se viabiliza os meios.

É certo que a indústria precisa da interação com profissionais de saúde para obter informações relevantes ao desenvolvimento e aprimoramento dos seus produtos, ou seja, para o exercício pleno da exploração da sua atividade.

Sendo a medida trazida pelo Projeto de Lei ora analisado, que pretende o rompimento do vínculo entre indústria e profissionais de saúde, um verdadeiro obstáculo ao incentivo constitucional da livre iniciativa da indústria de produtos para saúde.

O controle estatal na atividade da indústria

Tendo, portanto, a sua livre iniciativa controlada pelo Estado, a indústria healthcare precisa ter condições de explorar atividade econômica atendendo a avalanche de imposições estatais, feitas por meio da ANVISA e, muitas vezes, por meio do Código de Defesa do Consumidor.

Para produtos e serviços relacionados à tecnologia e dispositivos médicos, não basta a disponibilização no mercado de produtos de qualidade e eficácia asseguradas, também é necessário que se assegure meios para viabilizar a sua melhor utilização, pois, ainda que bem-produzidos, se mal utilizados, o dano será ocasionado de igual modo.

Pairando nesse ponto o dever de informação que a indústria tem para com o setor de saúde.

Demonstra-se notório que não há fonte melhor de informação que a indústria para fornecer, de forma didática e precisa, as informações necessárias para a melhor forma de utilização dos seus próprios produtos, muitas vezes inovadores e exclusivos.

É exatamente nesse ponto que o projeto de lei impactará negativamente a operação da indústria, obstaculizando o pleno atendimento dos mandos estatais, atendimento esse atingido através da interação com os profissionais de saúde, efetivado no momento da troca de conhecimento técnico capaz de garantir a melhor utilização de seus produtos, maximizando o bem da coletividade e a segurança do paciente.

O Desenvolvimento Nacional

Em sede constitucional resta estabelecido que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é a garantia do desenvolvimento nacional.

Assim, em capítulo próprio (IV), o texto magno trouxe dispositivos que tratam exclusivamente da ciência, da tecnologia e da inovação, como forma de fomento ao desenvolvimento nacional, uma vez que o do desenvolvimento científico e tecnológico promove o desenvolvimento econômico que, por sua vez, promove o desenvolvimento nacional.
Essa empreitada ficou definida em sede constitucional como sendo incumbência do Estado em parceria com a iniciativa privada.

Dessa forma, a indústria healthcare como exemplar da iniciativa privada, tem participação incontestável no desenvolvimento científico e tecnológico do país, em especial na área da saúde.

Importante destacar que a indústria se utiliza da estreita relação com profissionais de saúde para identificar as necessidades do mercado, desenvolver e melhorar os produtos de cuidados para saúde.

Sendo assim, quando o projeto de lei visa romper o vínculo entre profissionais de saúde e indústria, acaba por dificultar uma interação imprescindível para o desenvolvimento e aperfeiçoamento dos produtos de saúde, servindo como desincentivo ao desenvolvimento científico e tecnológico do país como ferramenta de desenvolvimento nacional.

 

ANÁLISE SETORIAL

A importância da educação médica continuada para a qualificação profissional

A qualidade da formação médica vem sendo preocupação nos últimos tempos.

Questiona-se a qualidade das universidades, a sua distribuição geográfica, o conteúdo programático dos cursos, a falta de incentivo a especialidades médicas escassas, o nível de conhecimento da atual docência, dentre outros aspectos.

Somado a isso tudo, não se pode ignorar os impactos da globalização na formação médica, decorrente dos processos frequentes de migração de médicos, de tecnologia e fornecedores de produtos que cruzam fronteiras em todo o mundo.

Sendo assim, é prudente que se enxergue que o processo de formação médica vem sendo atingido pela intensa carga de novas tecnologias, fato este que demanda maior preparo na formação dos clínicos.

Como resultado dessa realidade, estatísticas demonstram menos de 20% dos recém-formados se sentem preparados para o exercício da medicina.

Por essa razão, a educação médica continuada entra em destaque para contribuir com a formação, atualização e preparo dos profissionais de saúde, em especial àqueles localizados longe dos grandes centros urbanos, pois dissemina o conhecimento com foco no aperfeiçoamento profissional e colabora também para a diminuição da assimetria de informação entre os profissionais de saúde.

Ilustrada a relevância da educação médica continuada para qualificação do profissional de saúde, mais temerária se torna a possibilidade da sua transferência ao sistema público, cujas condições financeiras insuficientes já foram aqui ressaltadas e que certamente inviabilizarão a continuidade do processo de educação, em prejuízo do setor de saúde como um todo.

A importância da educação médica continuada para a segurança do paciente

Um profissional de saúde desatualizado se torna barreira de acesso dos pacientes às mais avançadas e modernas opções de cuidado de saúde, isso em decorrência da sua desatualização não permitir sequer que informações relevantes façam parte de sua esfera de conhecimento.

Por outro lado, um profissional razoavelmente atualizado, que conheça as opções mais modernas e avançadas de cuidado de saúde, mas que não esteja preparado para uma utilização segura desses mesmos recursos, certamente causará risco à segurança do paciente.

Dessa forma, é seguro dizer que a educação médica continuada guarda relação com a máxima “the best for the interest of the pacient”, garantindo-lhe a melhor opção de cuidado de saúde com a devida segurança.

Por essa razão eventos de educação médica continuada devem ser realizados por estruturas capacitadas a fomentá-los com qualidade, como tem feito a iniciativa privada.

 

PARÂMETROS DE COMPLIANCE PARA O PROCESSO DE EDUCAÇÃO MÉDICA CONTINUADA

A educação médica continuada nos moldes atuais, traz inúmeros benefícios ao setor de saúde, no entanto, não se ignora o risco de durante esses eventos serem criados dilemas éticos e situações de conflito de interesses.

A indústria, algumas vezes se perde em seu instinto agressivo em busca da potencialização de seus lucros, ao passo que os profissionais de saúde, algumas vezes, também se afastam do caminho ético e independente no exercício profissional, formando assim alianças de cunho estritamente comercial ao arrepio da ética, das leis, dos parâmetros de compliance, do equilíbrio do setor de saúde e da proteção dos interesses do paciente.

Esse cenário negativo é reflexo do desvirtuamento de uma relação legítima e benéfica, criada tanto para a divulgação de produtos, beneficiando a indústria, quanto para a atualização profissional, beneficiando os profissionais e o sistema de saúde como um todo.

Para evitar que essa relação seja desvirtuada e perca seu propósito legítimo, controles precisam ser observados tanto pelos profissionais de saúde, quanto pela indústria, para fins de se mitigar riscos de conflito de interesses.

Dessa forma, recomenda-se aos profissionais de saúde que se atenham ao exercício profissional em estrito cumprimento do Código de Ética da profissão, pautando sua conduta para o melhor aos interesses do paciente; que observem os protocolos clínicos que justifiquem suas prescrições, em especial às que indiquem medicamentos e dispositivo médico implantável; que se familiarizem com controles de compliance para profissionais de saúde, com vistas a evitarem exposição à dilemas éticos.

De igual modo, recomenda-se para a indústria a observância dos seguinte controles: elevação do nível de integridade em sua atividade, em especial na condução da relação com profissionais de saúde, não interferindo em sua liberdade profissional, cooptando-o para influenciar indevidamente na prescrição e uso de seus produtos; aprimoramento do relacionamento com profissionais de saúde com base em critério objetivos, com deslocamento de áreas comerciais; observância dos parâmetros de compliance setorial largamente fomentado entre os players e associações setoriais para promoção de eventos de educação médica continuada.

Atendidos esses controles, estarão um pouco mais mitigados os riscos de conflito de interesses entre profissionais de saúde e indústria no cenário da educação médica continuada, preservando a interação positiva e dela extraindo somente as benesses esperadas e necessárias ao setor de saúde.

No entanto, em havendo desvios de conduta, que acabem por desvirtuar a interação colaborativa entre ambos, a transformando em mero arranjo comercial, que todos os esforços sejam convergentes para a devida aplicação, com severidade, dos dispositivos legais disponíveis em nosso ordenamento jurídico.

Com fiscalização e controles adequados, o elo entre indústria e profissionais de saúde, para fins de educação médica continuada, permanecerá e os dilemas éticos oriundos dessa interação serão cuidados de modo a atender aos anseios da sociedade, do setor de saúde e da CPI da Câmara dos Deputados, autora da obra legislativa objeto do presente artigo.

 

Aline Moura é Gerente de Compliance – Eurofarma LATAM, Diretora Acadêmica do IBDEE (Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial) e Coordenadora Executiva e Pedagógica no MBA Governança em Compliance da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).

 

* A opinião manifestada é de responsabilidade da autora e não é, necessariamente, a opinião do IES

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