Por Carlos Eduardo Gouvêa
Pouco mais de dois anos se passaram desde que o SARS-CoV-2, vírus causador da COVID-19, chegou ao Brasil trazendo muita dor, desafios e incredulidade sobre a capacidade do ser humano em ser criativo – inclusive para o mal!
Segundo dados publicados em fevereiro último pelo IPEA – Instituto de Pesquisa Aplicada, durante o período da pandemia, o brasileiro perdeu cerca de 4,4 anos de expectativa de vida. Ou seja, ao invés de vivermos os esperados 76,6 anos (média de 2019), vive-se hoje cerca de 72,2 anos. A razão é simples: morreram muito mais jovens do que se esperava. Aliado a isto, a decisão de muitos casais em postergar gravidezes planejadas trouxe também um grande impacto futuro no crescimento da mão de obra – a PIA (população em idade ativa) cairá de 136 milhões em 2020 para 133 milhões em 2035. Algumas destas mudanças poderão ser revertidas no longo prazo, porém nos curto e médio prazos, teremos uma pesada conta a pagar em várias áreas.
A grande pergunta que fica é: precisávamos estar nesta situação? Provavelmente não! Se por um lado, fomos muito rápidos na formação de alianças para buscar soluções, houve também muita rapidez para a proliferação de desvios de condutas, fraudes, corrupção, nos diferentes níveis.
Do lado positivo, merece destaque a rapidez com que todo o setor de saúde organizou-se diante do apagão logístico e de suprimento do início de 2020, a fim de buscar alternativas para restabelecer linhas aéreas com a Ásia, por exemplo – contando inclusive com fretamentos de aeronaves para importação dos insumos básicos que se faziam urgentes, tais como respiradores, máscaras, testes de diagnóstico. A sociedade civil organizada também fez o seu papel ao colaborar com programas de mapeamento das estruturas de vacinação em todo o País, colaborando rapidamente com equipamentos e outros itens necessários para iniciar-se o quanto antes a vacinação, tão logo estivessem os imunizantes aprovados pela ANVISA e disponibilizados pelo PNI – Programa Nacional de Imunização do Ministério da Saúde. O Legislativo Federal, por sua vez, montou uma comissão especial mista para o combate à COVID-19 e, de forma ininterrupta, procurou dar respostas céleres às mais diferentes necessidades que iam surgindo. E assim, tantos outros atores, como ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, IES – Instituto Ética Saúde, ABIIS – Aliança Brasileira da Indústria Inovadora em Saúde, vieram de forma criativa e colaborativa com boas propostas que foram sendo paulatinamente implementadas.
Por outro lado, à medida em que várias ações foram sendo implementadas para evitar burocracia e demora excessivas no acesso a suprimentos essenciais, como por exemplo a dispensa de licitações para itens relativos à COVID-19, possibilitada pela Lei 13979/20, várias denúncias de desvios de conduta foram sendo reportados por diferentes canais e mesmo pela imprensa. Casos como respiradores comprados e jamais entregues ou máscaras vendidas por uma loja de vinhos por valores totalmente incompatíveis com a realidade de mercado. E eles não foram únicos. Nas várias esferas houve situações claras de corrupção, pagamento de propina, falta de seguimento das regras mais básicas de um processo de compra. O que se viu foi um total abandono dos controles exigidos em licitações, por vários gestores e nas três esferas: União, Estados e Municípios.
O Instituto Ética Saúde e seus parceiros procuraram, ao longo da pandemia, alertar os gestores públicos sobre a importância de manter os controles e as boas práticas de um processo de aquisição, mesmo que diante da possibilidade de dispensa de licitação. O apreço pela integridade no processo deve permanecer em qualquer situação – mesmo em casos de extrema emergência e urgência dos atos. Foram estruturados, dentro do IES, comitês de apoio tanto para o gestor público com eventuais dúvidas sobre como conduzir um processo nesta situação excepcional, bem como para o empresário, preocupado em fornecer o seu produto de forma rápida e correta (“Plantão de Dúvidas – COVID-19” e “Assessoria para Aquisição de Produtos para Saúde – COVID-19”)
O impacto total da corrupção na saúde dificilmente poderá ser corretamente avaliado, porém a percepção do custo da corrupção na saúde em breve o será, através de um projeto conjunto da FGVethics com o Instituto Ética Saúde. O fato é que para cada denúncia que é feita, há possivelmente outras tantas situações que não serão conhecidas e não serão, portanto, investigadas e seus responsáveis jamais serão punidos… Lamentável pois além do custo econômico, haverá um custo social considerável, como se percebe no prefácio deste artigo: 4,4 anos de vida do brasileiro foram ceifados por conta da pandemia. Quanto não poderíamos ter evitado se não houvesse corrupção na saúde?
O CIDADÃO INVISÍVEL
Todavia, infelizmente, a corrupção acaba trazendo um ônus maior para aquele cidadão invisível ao sistema, que, por não saber seus direitos, não se manifesta. Ao não se manifestar, acaba criando, involuntariamente, um terreno fértil para criminosos inescrupulosos que se valem de licitações fraudadas, produtos irregulares ou falsificados, contratos pagos e produtos não entregues, apenas para citar alguns dos esquemas encontrados.
No Brasil, o SUS – Sistema Único de Saúde tem como um dos seus pilares a universalidade do acesso. Ou seja, toda a população deveria ter acesso a produtos e serviços essenciais para saúde. A questão principal nesta discussão é se há ou não a correta informação sobre tais direitos do cidadão e sobre os deveres do Estado. A resposta é bem simples: não!
A própria fragmentação do processo decisório no sistema de saúde acaba aumentando ainda mais a fragilidade e hipossuficiência do indivíduo na ponta: no sistema privado, a escolha do médico é feita pelo paciente, mas a prescrição do tratamento e produto a ser utilizado é feita pelo médico. Por sua vez, quando se vai escolher o provedor de serviço de saúde, tal decisão será tomada em conjunto pelo médico e paciente. Por fim, a escolha do fornecedor do produto a ser utilizado caberá ao serviço de saúde.
Já no setor público, o paciente não tem praticamente direito a qualquer escolha. Ele simplesmente tem de aceitar o que se oferece: profissionais de saúde, locais de assistência, produtos disponibilizados. A sua desinformação fica ainda maior neste caso: diagnóstico, prognóstico, terapia, produtos, serviços.
A corrupção na Saúde mata? Sim! Porém, arrisco a dizer, não é o único motivo por tanta morte e prejuízos. A demora na liberação e promoção do acesso a diagnóstico e terapias, pelas mais diversas razões inclusive por falta de regulação e políticas públicas, pode ser tão ou mais danosa. No caso da pandemia, aprendemos a duras penas que é mais do que necessário incorporar-se de maneira acelerada novas soluções em termos de diagnóstico e terapias, além de novos ambientes de saúde para promoção do acesso.
Foram registrados pela ANVISA (1), neste período, mais de 758 testes de diagnóstico (RT PCR, testes de anticorpo, antígeno e, recentemente, autotestes) que possibilitaram informações cada vez mais precoces e precisas para o individuo e, por consequência, para o rastreamento de seus contatos – buscando-se assim a interrupção do ciclo de transmissão do vírus. O controle epidemiológico, normalmente papel do Estado, acabou sendo feito em parte pelo setor privado, como no caso da ABRAFARMA, que conseguiu realizar mais de 16,6 milhões de testes neste período – em um ambiente de saúde totalmente novo para o diagnóstico: a farmácia.
Ao se adotarem novas ferramentas de diagnóstico (testes rápidos e autoteste de antígeno) e novos ambientes, mais próximos do cidadão (farmácias), conseguimos seguramente trazer muitos cidadãos até então invisíveis para o sistema de saúde. Muitos deles nunca tinham feito um exame de diagnóstico e, por medo, insegurança ou até distância, não iriam a laboratórios ou hospitais para se testar.
Com tudo isto, vemos que a responsabilidade para aprimorar-se o legado que será deixado é enorme. Temos de olhar para outras situações graves que nos rodeiam, como a atual epidemia de sífilis ou mesmo os mais de 500 mil pacientes com hepatite C, uma doença grave e silenciosa e que não se sabe do seu status (sendo que há tratamento incorporado e disponível no SUS). Temos de continuar avançando na promoção do acesso de forma inteligente e acelerada, dentro do conceito de universalidade. Aprendemos, infelizmente, que o tempo urge! E que corrupção e omissão na Saúde matam!
Carlos Eduardo Gouvêa é advogado, mestre em administração pública e diretor de relações institucionais do Instituto Ética Saúde
* A opinião manifestada é de responsabilidade do autor e não é, necessariamente, a opinião do IES