por Sérgio Rocha
Você já imaginou prestar um serviço ou vender um produto e não poder emitir a nota fiscal de venda, o boleto para pagamento e levar mais de seis meses para receber o valor a que tem direito? Pense, então, se essa (má)prática virar rotina e não exceção? Como fazer para manter o seu negócio?
Pois este é o drama de centenas de fornecedores de produtos médico-hospitalares no Brasil. Uma das práticas antiéticas mais graves na saúde atualmente no país, que coloca em risco todo o sistema de atenção ao paciente, nas redes pública e privada. Estamos falando de falta de ética e responsabilidade que gera mais de R$ 2,3 bilhões de prejuízo, por ano, segundo o levantamento mais recente da Associação Brasileira de Importadores e Distribuidores de Produtos para Saúde. O cenário fica ainda mais crítico quando incluímos, na equação, as glosas injustificadas e a inadimplência. O tripé (retenção de faturamento, glosas e inadimplência) atingiu o valor de R$ 3,8 bilhões, comprometendo cerca de 35% do faturamento das empresas associadas à ABRAIDI.
O Instituto Ética Saúde (IES) mapeou todos os relatos de fraudes na cadeia de valor da saúde brasileira que chegaram ao Canal de Denúncias, nos últimos 8 anos. “Retenção desleal de faturamento por parte de hospitais e planos de saúde” está no topo da lista das práticas mais citadas e também das mais prejudiciais à sustentabilidade do setor. Ela é definida pelo próprio Instituto assim: ‘após a realização do procedimento cirúrgico, as intermediadoras, fontes pagadoras, gestoras e executoras de serviços de saúde e/ou prestadores diretos de serviços de saúde, postergam a autorização de faturamento dos produtos utilizados. Isso traz enorme risco às empresas fornecedoras de material, em caso de fiscalização tributária, pois os produtos já não constam de seus estoques, mas a nota fiscal de vendas não pôde ser emitida, o que pode ser interpretado como sonegação fiscal’.
Mas por que essa prática é considerada desleal ou até mesmo antiética? Ela é desleal na medida em que a inação ou omissão da(s) outra(s) partes faz com que o fornecedor não cumpra com as regras do jogo na sua integralidade. Alguém pode indagar: “Seja mais específico! O que isso significa na prática?”. O processo de liberação do faturamento é truncado, complexo, exige uma série de controles, documentos. Além disso, o processo é inverso. A Ordem de Compra (OC) das órteses, próteses e materiais especiais (OPME) é autorizada no fim do processo, após uma extensa análise, ou seja, o fluxo de compras é muito distinto de outros setores da economia e segmentos da saúde, em que a OC dá início ao processo de compras.
A complexidade não pode ser uma justificativa para prazos extensos de autorização da ordem de compra e, por conseguinte, de liberação da nota fiscal de venda do produto. Como explicar ao Fisco que o produto não está mais no estoque, que ele já foi utilizado no paciente, mas que a nota fiscal de venda ainda não pode ser emitida? Perceberam agora o risco tributário? Como ficam a mente e o bolso do empresário de OPME, que forneceu o produto, honrou seu compromisso, não recebeu o pagamento (risco financeiro) e ainda pode encarar um risco tributário. Uma verdadeira espiral da morte, não é mesmo? Como sobreviver em um cenário tão difícil?
Alguns podem dizer que o problema de inadimplência sofrida pelo dono da mercearia, do mercadinho do bairro ou do boteco da família é resolvida com a placa: “Atenção: Não vendemos mais fiado. Por favor, não insistir!” Nesse contexto, a exemplo da sabedoria popular, seria importante que os fornecedores de OPME fizessem o mesmo.
Contudo, como demonstrado acima, a solução deveria ser tão simples quanto isso, mas infelizmente não é, pois: (1º) Da forma como o sistema foi construído, toda venda de OPME, dispositivo médico, é fiado. Novos modelos de remuneração (pagamento por pacote) e cirurgias eletivas (tudo o que foi cotado, foi devidamente entregue e utilizado na cirurgia), a princípio, configurariam maior previsibilidade aos envolvidos, contudo, percebe-se que – mesmo nesses casos – ainda há retenção de faturamento. (2º) Infelizmente, a má prática se espalhou, atingindo estruturalmente o sistema, ou seja, de fato a exceção virou regra, que não consta dos manuais, do arcabouço normativo, mas que é vivida no dia a dia por meio de regras comerciais ditadas pelo Poder Econômico.
Além dos riscos financeiro e tributário, o risco regulatório também compõe o multifacetado mosaico da Retenção de Faturamento. O grande ponto aqui é a rastreabilidade do produto fornecido e implantado no paciente. Conforme disposto no Manual de Boas Práticas de Gestão de OPME, no item II da seção 6.4 (Rastreabilidade de OPME): “A fim de garantir a rastreabilidade das OPME, uma etiqueta do produto deverá ser fixada nos seguintes documentos: documento fornecido ao paciente, prontuário do paciente e nota fiscal ou Danfe de faturamento financeiro”. Em outras palavras, a rastreabilidade dos dispositivos médicos implantáveis está atrelada ao faturamento das mercadorias, mediante emissão de nota fiscal.
Como podemos ver, o problema não pode ser reduzido a um mero desarranjo comercial, uma questão de débito e crédito entre entes privados. Há uma série de ramificações, riscos que derivam das disfunções do relacionamento econômico-financeiro entre os agentes da cadeia de valor em saúde e que exigem um novo modo de agir.
Um novo pacto pela da saúde precisa ser firmado com urgência, caso contrário, a sustentabilidade de toda cadeia pode ser ainda mais comprometida, com desajustes no fornecimento de itens essenciais para as pessoas em momentos tão vulneráveis como os que envolvem a saúde. O IES tem um papel fundamental, pois somente com a promoção de relacionamentos econômico-financeiros éticos, transparentes e saudáveis, conseguiremos dissipar o clima de desconfiança que paira sobre as nossas cabeças.
Sérgio Rocha é presidente da ABRAIDI – Associação Brasileira de Importadores e Distribuidores de Produtos para Saúde
* A opinião manifestada é de responsabilidade do autor e não é, necessariamente, a opinião do IES