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Na saúde não existe “o bom ladrão”

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por Prof. Dr. Celso Cláudio de Hildebrand e Grisi

 

Chove o céu como aquela ampla igualdade distributiva que vemos, mas em a água chegando à Terra, os montes ficam enxutos, e os vales afogando-se: os montes escoam o peso da água de si, e toda a força da corrente desce a alargar os valores; e queira Deus que não sejam teatro de recreação para os que estão olhando do alto, ver nadar as cabanas dos pastores sobre os dilúvios de suas ruínas. Ora, guardemo-nos de algum dilúvio universal, que quando Deus iguala desigualdades até os mais altos montes ficam debaixo da água. (Pe.Vieira)

Vez por outra, os conflitos morais de nossas políticas públicas me incentivam à leitura dos “Sermões do Pe. Antônio Vieira”, um seiscentista, com seu estilo barroco e que, certamente, dispensa apresentações. E nestes tempos em que se tenta recuperar a ética como marco para a boa conduta nos negócios, casualmente abro o livro no “Sermão do Bom Ladrão”. Nele Vieira desfila as mazelas dos governantes de seu tempo: ataca os que se serviam da máquina pública para o enriquecimento ilícito. Expõe os escândalos no governo e toda a sorte de venalidades em gestões fraudulentas, bem como aponta para a desproporcionalidade das penas impostas à população e a generosidade das punições dirigidas aos governantes.

Não se pode deixar de admitir a atualidade do texto, quando pensamos no Brasil de agora. A expressão “bom ladrão” encontrou, na pena de Vieira, o episódio bíblico da crucificação de Jesus. Dois bandidos foram também crucificados ao seu lado. Considerados como os piores e mais hediondos criminosos de então. Para esse tipo de pessoa reservava-se a pena a morte por meio da crucificação.

Um deles chamava-se Dimas, a quem Vieira considerou ser o bom ladrão porque ele admitiu seus próprios pecados e reconheceu que Jesus apenas praticara o bem e, por isso, não deveria ser castigado. Alcançou, por essa razão, o perdão por todos os descalabros que praticou durante sua vida. Alcançado o perdão, passa a ser considerado o “bom ladrão”. Divinamente perdoado e morto a seguir, não foi absolvido diante da justiça dos homens.

Vieira usou a expressão “o bom ladrão” de forma metafórica, faculdade exercida, talvez, por um excessivo abuso de linguagem, numa malsucedida tentativa de arguir a ausência de crimes nos seus comportamentos pregressos. Argumenta que os atos praticados estariam legitimados pelo estado famélico ou por necessidades de outra natureza. Ledo engano. “Dimas viveu quase toda a sua vida terrena como ladrão e, em sua juventude, era o líder de uma grande quadrilha de bandidos egípcios” (wiki OrthodoxWoki). As condutas de Dimas foram tidas como hediondas e foram elas que o levaram à cruz.

Seja como for, pequenos ou grandes furtos, vindo de estados de necessidades extremas ou decorrentes da ambição ou do egoísmo humanos, todos os que os praticam são ladrões, bons ou maus.

Nesta tese, Vieira ao admitir em favor do bom ladrão apenas os furtos menores como elemento para a impunidade não se vê sozinho. Acompanha-o o ordenamento jurídico nacional, seja pelas inquestionáveis hipóteses, da falta de tipicidade pelo princípio de insignificância ou, pelo estado de necessidade que exclui a ilicitude da conduta ou, ainda e finalmente, pelo reconhecendo que este furto é contemplado pela exclusão da culpabilidade. Deixando à margem as tecnicidades jurídicas, os furtos pequenos ou grandes estão submetidos às leis penais que não podem ver incentivadas as práticas de pequenos delitos patrimoniais.

No campo da saúde, os princípios da ética devem se sobrepor ao aparato legal. O comportamento ético impõe-se à todas as decisões, sejam pelas consequências produzidas a indivíduos em particular, sejam por aquelas de maior expressão no campo social. Não existem aqui pequenos delitos patrimoniais. Todos são grandes e muitos, cruéis. O objetivo de qualquer decisão no sistema de saúde deve contemplar o paciente, este sim, individual ou coletivamente, recorre ao sistema de saúde à busca da preservação da vida e/ou de sua qualidade.

Embora tangíveis, esses bens são de difícil avaliação. As consequências de decisões afastadas do plano ético produzem prejuízos por vezes irreparáveis, com comprometimentos que se estendem no tempo e que podem ser estendidos à toda a sociedade. Não existe aqui a possibilidade de afastamento dos princípios éticos que possam ser chamados de pequeno ou grandes. Não se trata de qualificar ladrões como bons e maus. Neste caso, todos são maus pois os estados de necessidades referem-se ao doente e não a qualquer outro agente da cadeia da saúde.

 

Celso Cláudio de Hildebrand e Grisi é economista, professor da Faculdade da Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo e Presidente do Conselho de Ética do Instituto de Ética Saúde.

 

* A opinião manifestada é de responsabilidade do autor e não é, necessariamente, a opinião do IES

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